Entrevista Jefferson Medeiros

Brincadeira, 2020.

Nascido em São Gonçalo, RJ, atualmente trabalha e reside na mesma cidade. Formado em História pela UERJ-FFP, especializado em Ensino de Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras pelo IFRJ, mestre em Estudos Contemporâneos da Arte pela UFF, é músico percussionista e professor de História, Sociologia e Filosofia. Propõe discussões sobre a violência no cotidiano urbano periférico, suas raízes e consequências.

Instagram 

Bandeira, 2019.

_Jefferson, sua trajetória acadêmica se inicia na faculdade de história da UERJ. Durante a graduação você já sentia alguma inclinação a trabalhar com arte? 

Quando entrei na faculdade eu já era músico, já tocava profissionalmente, fazia dança contemporânea em um grupo de dança da escola, e fazia artesanatos que eram minha renda, e continuou sendo durante a faculdade e depois dela. Então, entendo que o fazer artístico me acompanha desde cedo, não sei precisar quando começa. Para além disso, eu sentia vontade de ser professor, trabalhar com Educação, daí busquei a Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Não faço distinção entre arte e educação. Busco que no meu trabalho seja uma coisa só. O disparador para me inclinar às artes visuais certamente foi estagiar como educador no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, quando entrei lá em 2008, entendi que eu queria produzir meus discursos daquela maneira, me faltava o conceito base do meu trabalho, só em 2016 fiz o primeiro trabalho. Inevitavelmente esse conceito foi a forma como sou afetado no meu lugar social, acho que por isso meu trabalho é um perspectiva a partir de São Gonçalo e dos desafios da existência coletiva nesse lugar. Desafios que não são próprios só de SG, mas, das zonas marginalizadas do mundo. 

Sulear, 2020.

_ Na academia e no circuito de artes, ainda se luta para caracterizar artesanato enquanto “arte”, muitas vezes passando por falas que deslegitimam o artesanato enquanto forma válida de arte, o colocando numa subcategoria, o que não considero justo quando trabalhamos com artesãos. Como era sua relação com o artesanato? Você enfrentou algum dilema trabalhando com o mesmo? 

Na verdade não me importo muito com essa discussão, sei bem dessa desvalorização das artesanias. Fazer uma diferenciação entre que é feito para ser utensílio e o que é feito para ser contemplado, me parece antes de qualquer coisa uma forma de criar um lugar com acesso restrito. Uma forma de cercar um conhecimento que é de domínio de um grupo específico. Muitas pessoas se ocupam de teorizar sobre isso, acho muito justo. Mas até agora só tive conhecimento dessa diferenciação dentro de uma perspectiva ocidental colonizadora. Vejo que um artesanato utilitário pode apresentar um conceito forte que ofusca a visualidade. Também vejo que objetos que nascem pensados para ser arte por vezes tem um visualidade incrível mas com conceitos que não se sustentam.  Então a verdade é que não sei, não sei a diferença, mas, me sinto artesão.  Olha, certamente as pessoas pagam mais caro no que chamam de arte do que no que chamam de artesanato, já tive as duas experiências. Engraçado que tinham brincos que eu demorava 5,6,7h pra terminar, enquanto outros objetos artísticos eu não demoro 1h de trabalho. Nos dois processos há esforço intelectual, então, não sei o que acontece. De qualquer forma é possível observar que esse trabalho que exige esforço físico não é valorizado mesmo. Havia uma música que cantavam para mim durante a faculdade, quando eu vendia artesanatos.

“De todos os amigos que eu tenho Juninho (eu) é o mais mendigo, artesanato não é arte é hobby, meu amigo”.

Acho que isso expressa bem a ideia estreita do coletivo sobre o artesanato, e carrega também uma avalanche de preconceito. Passei a pensar nisso depois.

R.I.P HOP, 2018.

_ Você comentou que se sente também artesão, com toda essa disparidade entre  arte/artesanato, você já sentiu alguma pulsão ou necessidade de moldar sua produção?

Sim, eu sou artesão também, vou aprendendo com o tempo, com a prática contínua, gosto muito disso, adoro miudezas como pulseiras, brincos caixinhas, crochê, tudo. Acho que nunca me senti direcionado a moldar o trabalho para ter aspecto de artesanato ou de arte – eu nem saberia diferenciar – mas sempre que quero dar cabo de um trabalho eu penso em que tipo de técnica pode me ajudar mais. Então se vai ser uma técnica da construção civil ou da pintura não me afeta, só tem que caber. esses dias fiz um trabalho onde usei uma técnica de douramento com folha de ouro, Trabalhei no Theatro municipal do RJ, então sabia que isso era da competência da arquitetura/restauro. Dei uma pesquisada em como fazer e assisti a um vídeo de uma senhora aplicando as folhas em cabide para vestido de noiva. Tem uma enorme distância conceitual entre os motivos dourados do TM.  Minha Moringa – 2020 com douramentos e o cabide da senhora do YouTube. Mas,  rola uma proximidade entre tudo pela técnica. Então eu moldo um trabalho mais de acordo com o conceito, não sei, rs, tem um cado desejo, sinto de fazer e faço. Como já experimentei bastante coisa nesse sentido, e observo muito as coisas também, eu coloco esses aprendizados pra jogo na arte.  

Trava social, 2019.

_ Sua produção é fortemente inclinada e ligada à experiências da periferia e subúrbio do Rio de Janeiro. Em que momento você começa a enxergar a possibilidade de trabalhar, na arte, a possibilidade de expressar essa vivência?

Os primeiros trabalhos de arte que me afetaram de fato no MAC, eram produções políticas sobre a ditadura militar, feitos durante a sanguinária ditadura militar brasileira. Acho que é nesse momento que passo a ver essa possibilidade de discursar sobre minhas experiências.

Descarrego Corrosão, 2019.

_Suas obras possuem materialidades e estéticas bastantes características à sua produção, como cimento, vidro, canos, arame farpado, chumbo e afins. Ao observar seus trabalhos e a narrativa que os envolve, penso na potência discursiva presente nas obras. Como é sua relação com tais materialidades?

Eu, felizmente consigo ver beleza em muitas coisas, isso influencia certamente, acho lindo muro com cacos de vidro, tudo coloridinho, mas não é só isso, é uma coisa meio freiriana, acho que os materiais aproximam as pessoas da obra, quando faço um trabalho de cimento e chamo de MURO, a ponte fica mais sólida é uma comunicação concreta, acho que as pessoas podem sentir de imediato a textura desse trabalho, pois, já possuem uma ideia universal sobre o cimento. Pra além disso uso os materiais que tenho intimidade e às vezes curiosidade. Eu não penso muito no material, mas na matéria vida cotidiana que envolve que envolve o material. 

Descarrego Corrosão, 2019.

_ O Rio de Janeiro é uma das cidades mais perigosas do Brasil, e quem reside na cidade tem isso impresso em seu cotidiano. Uma materialidade recorrente na sua produção é a cápsula de munição, como é pra você trabalhar com esse material? 

Sempre me interessei pela violência urbana, não no sentido de ser agente promotor dessa violência, – nem polícia, nem bandido – mas de alguma forma minha atenção ficava presa a isso. Minha rua sempre foi violenta, uma das maiores diversões da minha infância era sair de bicicleta com outras crianças para ver quem conseguia encontrar corpos depois de algum confronto. Isso jamais poderia ser brincadeira para crianças. Uma vez encontrei uma cápsula de projétil deflagrado e não ignorei como de costume, fiquei pensando em como eu poderia transformá-lo em algo positivo. Nesse momento eu fazia artesanatos, como brincos, pulseiras, colares… Peguei a cápsula, cortei com um tesourão e dei a forma de uma folha, fiz um brinco ( ficou lindo ). Demorou alguns anos até que eu pensasse em utilizar esse material recorrente do meu cotidiano de outra forma. Entendi que não queria disfarça-lo, eu queria criar uma forma de despotencializar a violência. A cápsula é um grande símbolo de violência, o tiro já foi disparado e tiros sempre buscam a dor e a morte. Então comecei a buscar formas de desvelar essa realidade. A princípio eu queria muito colocar a violência em um lugar em que ao menos as pessoas que tivessem contato com meu trabalho pensassem: “não, isso não é normal”. É muito triste ver violência normatizada. É dolorido trabalhar como esse material, nunca sei se matou alguém. as pessoas que me conhecem acham e guardam cápsulas, projéteis e munição para mim, é sempre triste receber. Dei uma mudada nos materiais, não mudei o conceito, só estou buscando desvelar raízes das mazelas.  

Projeto, 2019.

_ Jefferson, em qual momento o estudo de práticas decoloniais encontra sua produção artística? 

Durante o curso de pós gradução em Estudo Contemporâneo das Artes -UFF  fiz uma disciplina, “Arte Decolonialidade” com o professor Luiz Sérgio, que trouxe uma perspectiva interessante. O conceito de Decolonialidade, embora trazido para discussão anteriormente em “Escola Floresta” – outra matéria, ministrada pelo Guilherme Vergara – passou a tomar corpo de possibilidade para minha pesquisa em arte, relacionando teóricas como Caterine Walsh, Walter Mignolo, Spivak… Trabalhar a decolonialidade passou a se tornar uma necessidade. A intenção é propor que, se somente a perspectiva de grupo tem força para conquistar liberdade, esse discurso decolonizante da arte só assume essa postura quando se comporta como grito coletivo. Por isso, a ideia é propor que para a arte enquanto discurso político periférico, ter competência decolonial, ela precisa ser fortalecida, imantada por outras vozes. Logo, para ser decolonizante não deve ser uma tradução individual do lugar social, mas uma tradução do que é comum entre os viventes desse lugar. Então, para acumular força, esse discurso precisa necessariamente se dividir, ou seja, entregar-se antes à sua esfera periférica e aglomerar o espírito do lugar social, somente assim terá força de libertação.. 

Lágrima de chumbo, 2019.
Colonialismo, 2019.

_ Ao falar sobre processos decoloniais, como acima mencionado por você, precisamos pensar coletivamente. Durante esses anos enquanto artista, quais trabalhos e artistas atravessaram você de forma significativa?

Quando comecei a fazer esse trabalhos e colocar no Instagram, já que eu não tinha a menor ideia de como fazer para mostrar em museus, conheci o trabalho de muita gente e ainda venho conhecendo. Eu certamente posso citar muitas pessoas, já consagradas, mas vou me ater a nova geração. O Alberto Pereira é um cara que me ensina muito através dos trabalhos dele, espero poder aprender por muito mais tempo. O André Vargas é um cara impressionante também, o moleque é iluminado. Eu conheci a Márcia Falcão em Janeiro de 2018, e assim, a vida dela é uma produção epistemológica impressionante. Tem um cara Allan Pinheiro, ele tem um agressividade que me toca muito, e ele ta potencializando isso de uma forma impressionante. Essa pergunta é muito difícil, na verdade eu gosto de muita gente, mas muita mesmo, falei os primeiros nomes que vieram na minha cabeça. Eu conheci a Talitha Rossi, que tem um trabalho lindo de verdade que embora não tenha um diálogo direto como o meu, sempre me enviou uma força gigantesca, me ensinando muito sobre esse universo da arte. Acho que isso é um atravessamento artístico. Eu vou parar, rs, como não falar da influência que o trabalho da Cantuária tem sobre mim, nossa… Que conste que falei sem nem pensar muito, caso o contrário seria uma lista gigantesca. 

Modesto registro para Deus e para Brocos, 2016.

_ Em um de seus trabalhos, “Pedagogia, 2020” está gravada a frase “Vou aprender a ler para ensinar meus camaradas”. Comenta um pouco sobre esse trabalho?

Sou um grande admirador da Bethânia, a adoro a música Yaya Massemba interpretada por ela, composta por Roberto Mendes. Toda a poesia é incrível, mas esse verso me toca profundamente. Encontrei esse verso em uma Chula Baiana antiga, um grupo chamado Samba Chula de São Bráz. Não sei se tem autoria registrada ou se uma sabedoria popular. Só despertei para tornar isso um trabalho a partir de uma pintura do Guilherme Kid, que trazia essa frase, esse trabalho está baseado no trabalho do Kid. É essa coisa de aprender para passar, um discurso coletivo. Esse verso resume o que penso, desejo e sinto sobre educação, que só é possível se for construção coletiva. Fora de uma perspectiva empática e solidária não acredito em nenhum modelo de educação. Uma educação mecanicista e mercadologica não é educação, é formatação. Ou tem troca afetiva ou é perda de tempo.

Pedagogia, 2020.
Pedagogia, 2020.

_ Em “Água, 2020” é possível ver a expressão de um problema Global. No Brasil, a questão e estado dos recursos hídricos é um problema urgente e preocupante. Diversas regiões do país, principalmente as mais pobres, não possuem acesso à água potável. De acordo com dados do G1, em 2020, 47% dos brasileiros continua sem acesso a sistemas de esgotamento sanitário. Que processos te levaram a criação desse trabalho? 

Sobre a obra Água -2020, posso dizer que é fruto dos meus incômodos relacionado empreitadas antigas com interesse em privatizar rios, aquíferos, lagos, represas e nascentes aqui no Brasil. Certamente isso não é uma ideia autoral do atual governo fascista, mas, de certo aprofundado por ele. tem coisas de uns dez anos assisti a um filme chamado Conflito das Águas, que  criou uma marca em mim, que acredito ter influência sobre esse trabalho. Sabemos que acesso à água é fundamentalmente privilégio, sobretudo em regiões áridas do nordeste. Até mesmo aqui no RJ que não se enfrenta fatores climáticos é possível observar a água como um privilégio havendo regiões onde água tratada e encanada é um sonho, até mesmo nos centros urbanos, a exemplo de diversas favelas do Rio. Claro que são regiões pobres que experimentam de forma acentuada o descaso do poder público. Então esse trabalho propõe pensar tanto as políticas de privatização que ferem inclusive a soberania nacional, a escassez experimentada pelas camadas periféricas, de onde falo. É sobre a negação desse item básico à existência humana.

Queima, 2019.

_ Alguns trabalhos seus assumem estéticas curiosas, se aproximando do grotesco, como “Escombros, 2020”, “Ferramenta, 2020” e “Reforma, 2020”. Ao desenvolver esses trabalhos, pensando a materialidade que os carrega, eles carregam força e significância. De que maneira se dá o processo de desenvoltura dessas obras?

As vezes passo um tempo considerável com determinado objeto acreditando que ele tem potência de vir a ser obra, então deixo sempre a vista, na maioria das vezes isso não dá em nada, mas continuo tentando. No geral tenho um ideia confusa de como produzir um discurso. A confusão não é só de como dar cabo da visualidade, as vezes a ideia não está amarrada na cabeça. então começo a manipular materiais que dialogam com o pensamento que está sendo construído e a ideia vai limpando. Por vezes tenho um visualidade em mente e no meio decido por outra, outras vezes paro de fazer por não ver mais sentido. Alguns trabalhos parecem macabros mesmo, principalmente esses que pensam a exploração e a violência que são coisas macabras, daí acho que não é opcional é inevitável. Reforma é meu rosto, não é tão grotesco assim, vai?! ( Risos ).

Muro, 2020.

_ Você participou de diversas exposições ao longo dos anos, existiu alguma exposição que modificou você e sua produção? 

Toda troca me modifica, mas as idas às escolas levando trabalhos, fazendo exposições nas aulas de pessoas que trabalham com arte educação que me convidam, certamente estabelecem marcas no espírito.

Sapata, 2020.
Moedor, 2019.
Soldado, 2019.
Sem título, 2019.
Ele não viu, 2019.
Obra embargada (tijolo), 2019.

Exposições

Casa Carioca, Exposição Coletiva Museu de Arte do Rio, 2020.

A Caminho da Babel, Exposição Coletiva, Espaço Niemeyer, 2019.

Raiz Comum, Exposição Coletiva,Centro Municipal Laurinda Santos lobo, 2019.

Exposição Coletiva 2 Mostra Bienal Caixa de Novos Artistas, 2019.

Galáxias Exposição Coletiva, centro de artes UFF, 2018.

Exposição Coletiva Corpos e Territórios: Arte em Disputa, Museu da República, 2018.

Exposição Coletiva Encontros, Espaço Cultural dos Correios Niterói, 2017.

Exposição Coletiva Parede I Meia, 2017.

Galeria de artes Partage Shopping da Secretaria de Cultura de São Gonçalo, 2017.

OAB, RJ, Onilé, Cine-debate, Reparação da escravidão negra e trabalho escravo, 2016.

OAB-SG, Onilé, Cine-debate, Reparação da escravidão negra e trabalho escravo , 2016.

UERJ – FFP I Seminário, Relações Étnico-raciais e Genocídio do Povo Preto, 2016.


Clarisse Gonçalves 1998. Graduação em história da arte na UERJ. Pesquisadora e historiadora da arte situada no Rio de Janeiro. Atualmente pesquisa manifestações artísticas periféricas, negras, e afrodescendentes no estado do Rio de Janeiro.