Morani, 1997, Nilópolis, nascido na rua zezinho em tal ano, reside também num lugar e trabalha registrando algumas novas coisas como fósseis, com suas próprias mãos.
Nota sobre a livre escrita aqui utilizada: Ao meu pedido que foi atendido generosamente pela edição da revista, sob esta condição, justifico o uso desta escrita sem revisão por acompanhar o livre arbítrio da palavra; a ausência de caixa-alta pelo que Herbert Bayer nos diz sobre a indistinção desta hierarquia entre as letras quando falamos; por fim, a propor um exercício de compromisso às presenças que são evocadas pelas palavras, citando Amadou Hampaté Bâ: “lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que profere. […] ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho do que ele é.”
_ morani, olhando os seus trabalhos, considero “memória” a palavra que mais os envolve. No início de seu percurso enquanto artista, sempre foi esse foi o caminho em mente?
eu percorro a ideia de ser artista enquanto a reivindico, então acho que nunca tive em mente sobre o que quero falar em específico, e sim que gostaria de falar algo. todo mundo tem uma história para contar e a isso se dá o nome de memória. sempre me interessei muito por memórias, principalmente das outras pessoas. pensar que existem histórias que só existem para alguém e aí ela te conta, te fazendo cúmplice quase de um segredo. tem um dado fenomenológico disso, também, mas não só. eu gosto muito de ouvir sobre as memórias das pessoas, mas com o tempo fui entendendo que toda memória também carrega um esquecimento. contar uma memória é quase como criar uma nova coisa, como construir um fóssil com suas próprias mãos. às vezes para outra pessoa. me tornar artista tem muito a ver com querer contar memórias, que sempre se refazem enquanto são contadas, sempre de uma maneira muito particular a quem conta, ressoando de uma maneira muito própria a quem ouve.
_ é verdade que cada memória carrega duplo significante. Ao criar certas peças, você parte de uma memória do indivíduo, assim, o contato com o outro acaba por abrir a possibilidade de significantes que uma obra possui. ao apresentar seus trabalhos é também realizada a ativação da memória. como esse despertar se apresenta?
é verdade que toda memória carrega muitas verdades. e são tantas as verdades, já dizia leonilson, num desses repentes confessionais. para cada verdade, um peso, e para cada peso, uma medida. tenho pensado muito através de alguns princípios da física quântica. alguns, mas não muitos, apenas aqueles em que consigo refazer caminhos com minhas bagagens, através dos meus óculos que quero te emprestar agora. esses percursos estão sempre, ainda que de forma inadvertida, sujeitos a bifurcações; uma dessas ideias quânticas que me veio à cabeça quando você me pergunta sobre a noção da memória carregar um duplo significante. pensemos que a todo momento em que algo acontece, essa mesma coisa também não acontece; de algum instante que podemos indicar como origem (pensando que todo momento pode ser indicado como origem, por exemplo, neste momento enquanto escrevo as palavras “pensando que todo momento pode ser indicado como origem, …”, eu errei alguns caracteres, tive que apagar e reescrevê-los, até mesmo reformulei a frase, e nisso já se fez um impacto a bifurcar realidades que podemos indicar como origem, enfim), existirá uma superposição de sim e não, o que resulta no sim ou não, enquanto ainda não forem determinadas nos descritores do espaço e tempo. borges escreveu um conto em que procurava tomar como método e matéria essas pequenas variáveis que implicam diferenças topológicas inteiras, intitulado “jardim dos caminhos que se bifurcam”, acionando termos de probabilidade em que a ficção se coloca como esse campo em que tudo é provável e improvável, simultaneamente. ao me contar memórias, as pessoas me trazem, talvez, com seus diferentes pesos, novos jeitos para duvidar e desconfiar de determinações já conhecidas anteriormente, e de re/tornar àquele acontecimento nesta linha temporal, desde-já re/fazendo caminhos que se bifurcam ao contá-los ou não os contar para mim. isso também me fez lembrar o trabalho da lygia clark, “caminhando”, propondo essa ação que não se encerra em si, mas apenas se bifurca em mais e mais possibilidades simultâneas a própria experiência.
_ morani, parte significativa do seu trabalho se entrelaça a memória, esta se manifestando física e afetivamente. como se desenvolve o processo de trabalhar memória?
esse processo de trabalhar a memória parte principalmente da escuta. eu acho engraçado reunir essas duas palavras: trabalho e memória. principalmente porque o trabalho é feito para esquecer, porque não é para se emocionar trabalhando. e a memória só existe se emociona alguém. tem toda uma explicação neurológica para isso, o que eu acho ótimo porque dá para falar em umas línguas que não são bem as que me interesso em falar. também entendendo a memória como uma coisa quântica. as memórias são faladas e aí então escutadas, pensa o quanto de partículas, moléculas estão vibrando para que esse evento sônico aconteça. e não termina nesse instante da partilha, porque não é determinado. é quase como um efeito borboleta, eu posso te contar uma memória agora e alguém pode sonhar com essa memória no cazaquistão, ou em minas gerais. ou do outro lado da rua. tem isso também, a gente não sabe direito se o sonho vem do que a gente memoriza enquanto está no estado inventado como consciente. eu acho que tanto o sonho quanto a memória vem de um estado outro das coisas, é uma pulsão vibrátil, que movimenta vidas e mortes, sim e não, movimenta mesmo, aberturas e fechamentos: para além dessa binariedade dicotômica, determinadas e separadas.
_ comentando a relação entre trabalho, memória e esquecimento, me vem à mente o processo artístico. ao criar peças, é comum uma ideia ter início em um estado, e acabar se desdobrando em diversos caminhos e possibilidades. como você encara e lida com essas alternâncias?
eu tenho uma intuição intensa sobre os trabalhos de arte que faço, enquanto os faço, que não dizem respeito exatamente a nada. é como se fosse uma imagem que eu perseguisse, que abrisse caminhos a minha frente; como toda imagem é fantasmagórica, apenas paro quando percebo que é ela que me persegue. tenho um senso metódico que é bem projetual, o que pode se tornar bem caxias[1] às vezes. em minha pesquisa artística, tenho refletido nos últimos tempos principalmente sobre a forma – o que faço se condensa em diversas. não me incomoda porque dá um tom fugidio às especulações do sistema da arte, sobretudo sobre as dinâmicas de mercado. às vezes as pessoas nem me reconhecem como artista, o que eu procuro não me importar absolutamente, mas me incomoda a ideia torpe de que um artista se faz por uma previsibilidade, por uma prática linear ou progressiva. de todo modo, sempre assumi as dúvidas que tenho sobre mim mesmo, e isso se estende aos meus trabalhos. essas imagens me vem, não somente aos olhos, e procuro agarrar seus encalços com tudo que posso, principalmente com palavras. penso que a ideia de que a palavra não deixa muito espaço para as dúvidas é completamente racionalista; como entendo que meus trabalhos existem porque partem de uma escrita, fico pessoalmente ofendido com isso, porque são sempre caminhos muito traiçoeiros. para trazer uma frase que já escrevi num outro lugar, “escrevo sabendo que, do que pensei até virar palavra escrita, alguma coisa se perdeu, se capturou, se traiu, se confundiu e foi parar ali sem saber como chegou”. e ainda, quando li luis camnitzer citando ralph waldo emerson, “cada palabra alguna vez fue um poema”. um segredo que te conto aqui, nesta entrevista: gostaria de operar mais a partir destes significantes que também antecedem o próprio saber-falar.
_ parte do seu trabalho se debruça na memória familiar. conta um pouco sobre isso?
como eu disse antes, eu sempre me interessei por memórias, principalmente de outras pessoas. acho que as primeiras pessoas que a gente conhece na vida são os nossos familiares. e acho que as primeiras memórias que a gente faz são com elas, e as primeiras memórias que a gente ouve são delas. às vezes eu acho que tenho memórias inteiras que só existem porque minha mãe me narrou. e olha que eu sou uma pessoa que a primeira memória data lá dos três anos de idade. (eu beijava a barriga da minha mãe, que gestava meu irmão, todos os dias antes de ir para a escola.) eu sempre fui uma criança bem imaginativa também, comecei a ler bem cedo, aos quatro anos. a memória e a imaginação estão implicadas de tal forma que uma só existe com a outra. toda memória é imaginada, nunca se lembra de algo assim, preto no branco, exatamente como aconteceu. eu gosto de desfazer essas exatidões, que também são inventadas, mas tem a pretensão de existirem per si. por isso nunca gostei de mexer em réguas, e sempre fico me perguntando como se medem os quilômetros. mas essa é outra história. a memória dos meus familiares de alguma forma é minha, não só por uma herança genética, ou ancestral, mas por essa ficção que me forma e que foi forjada em grande parte por essas pessoas. eu nunca me identifiquei em nada com a minha família e acho que escutar memórias sempre foi algo que me conectou a eles. agora, embora ainda jovem me vejo tomando um pouco de noção de passagem do tempo, que de alguma forma é uma medida completamente inexata também. as memórias tem um outro peso, e penso que vão de alguma forma se tornar outra coisa, que ainda não consigo imaginar qual é. acho que daí vem os trabalhos de arte.
_ sua fala sobre o transformar da memória me leva a próxima questão, ao longo dos anos, realizando diversos trabalhos, também ocorrem diferentes leituras, de acordo com o tempo e estado das coisas. do início pra cá, como você enxerga tal transitoriedade?
refazendo ou não os caminhos já bifurcados e os bifurcando mais uma vez, seguimos cortando nossa fita de moebius, encarando a simultaneidade de frente e no fundo dos olhos. vou falar um pouco mais da minha formação enquanto pessoa, porque pode nos ajudar a pensar como me interesso tanto por essa ideia de que algo pode ou não acontecer, podemos ser ou não algo, me fazendo ser muito mais um borrão do que um risco – muito longe de ser um ponto. ao longo da minha infância, eu me mudei inúmeras vezes, não somente de casa mas também de escola, onde costumamos criar nossos primeiros vínculos em termos de socialização – ah, que engraçado se fazer através da educação, mas também da brincadeira. de alguma forma, sempre retornei a esse ponto de volatilidade em que uma substância muda de estado. era quase uma possibilidade de reinvenção constante, percorrendo inúmeros gestos e narrativas ficcionais, sempre muito referenciadas por signos da cultura “pop” por assim dizer. por instinto emocional, nunca criei muitos vínculos, com as outras pessoas ou com essas pessoas que eu criava para ser. pois é, quem se descreve pode não se limitar também, rs. um salto para quem sou no momento, completamente mareado por uma ressaca das subjetividades criadas em menos de 15 segundos para deglutição fácil, me vejo um pouco mais atento às transitoriedades, tentando passar longe desse desejo geral de criar um museu de si mesmo que duram 24 horas. meus trabalhos são formalmente inconformados, e vão passando por várias mídias que se situam em espaços “entre”, o que no fundo pareço estar me mostrando que a única constante da vida é a sua inconstância. a impermanência das coisas me apavora, mas também me fascina. então, sim, eu estou curioso para saber como vou pensar ou lembrar a mim mesmo nos próximos anos, também porque pensar a si mesmo é pensar tudo ao seu redor em profunda implicação, nada nunca separados – eu estou curioso ainda que nada otimista, vamos seguindo cortando nossa fita de moebius…
_ em afemia (2021), você apresenta a dissolubilidade da memória em matéria. fale mais sobre esse trabalho!
afemia é um desses mistérios curiosos. um querido amigo meu, uma das minhas pessoas favoritas no mundo, chamado lucas alberto, me disse um dia que existem algumas disfunções de linguagem nomeadas, – acho que existem muito mais que não são nomeadas – uma delas, ele me contou, a afemia, na qual se sabe o que quer falar, mas não se sabe como. isso sempre me lembra que para podermos ser algo precisamos lembrar de quem somos. e a memória é um trabalho árduo, sabemos. gosto de lembrar, junto disso, que a etimologia da palavra “palavra” também vem de abrir caminhos na terra, lavrar. abrimos caminhos, mas precisamos nos lembrar como retornar através desses, como refazê-los, sempre bifurcando-os. nesse borrão que não se quer risco, não poderia caber em identidade alguma. a memória, de alguma forma, sempre foi matéria – sinapses, cargas elétricas em neurotransmissores, passado simultâneo ao futuro, sangue e palavra. me lembro de quem sou para ser algo que não sou, também.
_ morani, enquanto artista, indivíduo e corpo afrodescendente, você encara os apagamentos impostos por uma cultura historicamente e estruturalmente racista, levantado e não deixando apagar tais apagamentos em seus trabalhos. antes de prosseguir, gostaria de saber como é vista por você a importância de se desenvolver peças de arte como as suas num país retrógrado como o Brasil.
recentemente li alguns trechos do livro “black and blur – consent not to be a single being”, escrito por fred moten, cujo título pode ser traduzido como “preto e borrão, consentir em não ser um único ser”. já nas primeiras linhas, moten prenuncia que seu livro se esforça em um particular caso de falha a qualquer determinação que possa delinear contornos ao problema enfrentado – isto é, a racialidade –, pois estes mesmos sujeitos racializados são sempre dissociados do lugar de enunciador desta narrativa sobre si, contraditoriamente. habitamos uma contradição, como se nos disséssemos: sim e não. neste ato, é representado o desaparecimento, a obliteração se faz a economia da identificação pelo regime da alteridade. reescrevo nas próximas linhas algo que gosto sempre de me lembrar das palavras de castiel vitorino brasileiro, em que ela nos alerta que a raça é uma distração que nos é imposta, um limite não somente psíquico como gestual, ao qual podemos forçá-lo contra o medo – da dor e do prazer – para mover. uma partícula quântica existe em um ou mais estados, enquanto ainda não for determinada. the black lives matter, a matéria das vidas negras, se faz escopo ao que pode ser lançado para fora e para além dos descritores espaço-temporais, por uma ética de profunda implicação, de diferença sem separabilidade, segundo os significantes manejados por denise ferreira da silva. abandonemos os descritores categóricos que dinamizam a repetição da performance de expropriação que serve como base para o capital – o devir-negro do mundo, trabalho 24/7, a escravização como efeito global da contemporaneidade. neste desenlace de uma inimizade ficcionada, não vejo motivos razoáveis para continuar trabalhando com artes no brasil. talvez em uma outra realidade, em uma outra bifurcação, a inimizade é amizade. esqueçamos para lembrar esses futuros.
_ ao falar sobre identificação, você me traz ao pensamento calo (2020), fala sobre ele?
“estive pensando que tenho um calo na garganta. / embrião de um esforço de falar, / calo.” esses são os primeiros versos do poema que escrevi e se desdobrou neste vídeo, como se bifurcasse. a identificação é sempre um jogo perigoso, ao meu parecer. quando falo, procuro atravessar esse jogo, profanando o lugar de onde os discursos emanam. contracorrente, a língua procura ir de encontro ao desejo – e não se reconhecer em nada do que já foi dito, escrito, falado, por nenhum mestre. imbricado a este gesto, existe um esforço que forma calos; nas mãos, nos olhos, na língua, na garganta. o campo de batalha é o espelho, espaço onde encontro esse embate. minha pesquisa retorna sempre a essa superfície fria, em que o vidro e aço são desmantelados de sua reflexão para revirar as diferentes camadas de significado que restam por debaixo, por detrás. existe aí uma curiosidade do que resta entre a profundidade e a aparência das coisas. me desvelo a mim mesmo nesta insistência, na qual encontro apenas uma maneira impossível de fazê-lo: espelhando também o tempo, o revertendo para que passado e presente se encontrem de uma maneira não tão óbvia. a ação se dá de trás para frente, de frente a este problema histórico que não se pode evitar: os efeitos globais da racialidade, matéria-prima ao colonial-capital. sou e não sou, por não desejar falar a partir de um ponto que me foi submetido e por desejar falar.
_ em o impossível (2019), você trata questões ligadas ao corpo, memória e tempo. fale mais sobre esse trabalho…
o tempo colonial também remanesce em vestígios materiais, em fenômenos-significantes que correspondem acumulações físicas à virtuais regidas pela mesma cena de valor econômico e ético, como já escrevi sobre um outro trabalho. o cais do valongo, localizado na zona portuária do rio de janeiro, é um desses significantes; assim como o meu corpo (cais-mar-embarcação) que é cotidianamente forçado a reencenar o passado em uma lógica que não faria mais sentido se as estruturas da arquitetura jurídica vigentes tivessem sido demolidas no tal momento da abolição. acredito que em algum tempo – em alguma bifurcação – estas estruturas foram sim abolidas, demolidas, ou sequer existiram. o tempo volta a ser espelhado nesse trabalho, em um desejo pela simultaneidade das presenças e presentes. este momento não poderia acontecer aqui e agora e por isso dou o nome de “o impossível” – assim como o desejo o é, por não se reconhecer em discurso de nenhum mestre. a perspectiva da paisagem, que se faria cartesiana, é desmoronada. nos esfacelamos, nosso corpo não passa de ruína afinal das contas. neste barco que não encontra cais a aportar, o contingente histórico encontra o coeficiente biológico, no qual todos estamos subordinados ao tempo da vida e da morte. como pode a densidade de uma memória permanecer matéria, fossilizar em solos necrosados? às vezes eu tenho essa mania de responder perguntas com outras perguntas, rs. é bom assumir as dúvidas, das quais me formo substancialmente.
_ morani, para finalizarmos, gostaria de perguntar sobre um trabalho específico. em reconhecimento, ou o pão nosso de cada dia (2018), você apresenta problemas e violências originárias do período da colonização, quando, afrodescendentes perdem a identidade e individualidade, sendo enxergados como instrumento de trabalho por colonizadores. essa característica se manifesta até hoje, na dificuldade que alguns indivíduos têm de encontrar raízes e origens, problemas não sofridos por quem não teve seus antepassados sequestrados por colonizadores. ao observar o trabalho, percebo a fragilidade e força que este exprime. a peça data de 2018, ao decorrer do tempo, nossos olhares apontam a modificação. fala sobre esse trabalho e como se deu o passar do tempo sobre sua relação com ele?
falar desse trabalho me emociona, foi o primeiro que expus na vida, o primeiro também que encaro de fato com a maturidade de um trabalho de arte. é feito materialmente de ausência: “a mais certa, a mais eficaz, a mais intensa, a mais indestrutível, a mais fiel das presenças”, como proust escreveu. eu nunca conheci minha avó materna, apesar de todos que já estiveram com ela em vida, apontarem semelhanças – principalmente, no olhar. uma dessas parecenças é que minha avó foi professora de artes e literatura, pelo estado do rio de janeiro, enquanto eu me vi artista muito através da educação. no entanto, nada do que foi feito pela minha avó enquanto uma educadora de arte foi preservado para que pudesse chegar a minha presença. nenhum esboço de pintura, nenhum objeto, nenhum desenho, nem um rabisco sequer. (enquanto são feitas exposições exclusivamente a rascunhos dos grandes nomes da arte…) os únicos vestígios materiais que encontrei deste acontecimento foram seus comprovantes de rendimento emitidos pelo governo, ao longo dos anos 1980. alguns até tinham umas coisas escritas, uma lista de compras aqui, um número de telefone acolá, apesar de já conhecer um pouco da sua caligrafia de outros documentos que também encontrei. da minha avó só me restou isso, resquícios burocráticos (coisa que tenho pavor, rs). fiquei pensando nisso, bem jovem, como tecer memória a partir dessa ausência? como suturar essa falta para olhar em seus olhos, tão parecidos com os meus, que só encontro em fotos 3×4? usei essa linha com uma cor parecida com a da minha pele, apesar de um pouco mais clara que a dela, para fazer um painel em que projetei o vídeo onde apareço comendo e cuspindo um pão, vendado com meu próprio rg. nunca nem sonhei com minha avó, acho que um pouco pelo que falei do sonho ser também memória, mas também vai ver ela não quer ser sonhada por mim ainda. de qualquer forma, insisto nessas continuidades: é muito importante para mim saber de onde vim para caminhar para onde vou. nesses caminhos, abrindo mais bifurcações.
[1] uma expressão, termo informal. popular ; pessoa que cumpre com extremo escrúpulo as obrigações do seu cargo. pessoa que exige de seus colegas e trabalhadores o cumprimento rigoroso das leis, regulamentos e determinações de serviço.
Clarisse Gonçalves 1998. Graduação em história da arte na UERJ. Pesquisadora e historiadora da arte situada no Rio de Janeiro. Atualmente pesquisa manifestações artísticas periféricas, negras, e afrodescendentes no estado do Rio de Janeiro.