Laís Castro é artista da performance e arte-educadora licenciada em Dança pela UFRJ. Atualmente cursa o mestrado no Programa de Pós Graduação em Dança na UFRJ. É gestora e curadora do espaço de arte Citrus Ateliê em Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro, onde propõe encontros ligados à estética periférica na arte contemporânea. Produziu e realizou a curadoria da Mostra Citrus de Dança Contemporânea (2016) no Teatro Arthur Azevedo contemplado no Edital de Ocupação dos Teatros da FUNARJ; CORPAS- Encontro de Performances de Mulheres Negras (2018) realizado na Casa Bosque (Campo Grande-RJ) e no Terreiro Contemporâneo (Centro-RJ). Foi curadora e produtora do evento itinerante Mapas para cruzar Fronteiras (2019) realizado em parceria com a Galeria Topografia. Foi arte-educadora no projeto O Despertar Artístico Periférico (2018) contemplado no Edital Arte Escola Territórios Sociais, e no projeto Curso Online de Videodança (2020).
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_ Durante a graduação nossa visão é modificada e assim a forma como encaramos a percepção de nossos corpos no espaço. Estruturalmente falando, quais impactos essas mudanças lhe causaram? Sendo formada em Licenciatura pela UFRJ, como foi o processo de descoberta das possibilidades do corpo na performance?
A graduação foi um espaço muito importante para a percepção do meu corpo em movimento. Eu danço desde criança, considerando diversos contextos, desde os espaços escolares até os momentos de festa. Essa primeira formação, da Escola de Dança, me deixou muito atenta à dança produzida, às formas, aos ritmos, e bem pouco atenta ao que isso produzia em mim. Em relação a isso, a festa e os meus momentos movendo sozinha em casa – um ritual íntimo de afastar os móveis da sala, abrir espaço, pôr um CD para tocar e sentir o movimento operando em mim – eram ocasiões em que abria espaço para outras sensações. O ingresso na graduação foi esse momento em que de alguma maneira os dois âmbitos da minha experiência com o movimento se encontraram, a escolarização e a festa do corpo. Ao mesmo tempo, me encontrar com as diversas referências que aquele espaço oferecia me fez desejar ampliar ainda mais as percepções do movimento e a relação com o outro. A minha conexão com a performance se insere em um contexto de abertura radical das minhas percepções sobre corpo e espaço. Pela natureza tão plural dessa linguagem eu encontro um terreno possível para meus desejos.
_ Laís, em Fade Out do Olhar, você inicia o desenvolvimento de uma performance a partir das das tensões e elementos encontrados entre centro e periferia. Enquanto uma mulher que transita, habita e se vê no meio dessas tensões, vejo como o funk, presente em alguns de seus trabalhos, é incorporado enquanto elemento sonoro. Sendo assim, um dos principais elementos do Rio de Janeiro, construindo identidades e transformando espaços. Enquanto artista e performer, como foi e se dá o processo de incorporar essa sonoridade em suas performances, com todas as suas nuances?
Fade Out do Olhar foi o primeiro trabalho que trata mais diretamente dessa minha relação com a periferia. Ele se estrutura muito a partir de elementos que são familiares, e que ao longo do processo de criação eu reconheci como relevantes na minha associação de experiências na periferia, entendendo-a como lugar e uma identidade compartilhada. Certas histórias que aconteceram durante o processo de criação fundamentam a performance, vou tentar resumir duas delas.
Lembro-me de um dia fundamental em que atentei para os nomes das estações de trem do Ramal Santa Cruz, as paradas. Eu estava com minha mãe e meus avós quando, assim de brincadeira, eu puxei em voz alta: – Central do Brasil, Praça da Bandeira, São Cristóvão. Minha mãe imediatamente: – Maracanã, Mangueira. E o meu avô: – São Francisco Xavier, Riachuelo, Sampaio… Já não me lembro bem se foi assim, mas na minha memória nós três recitamos em coro todos os nomes até chegar em Santa Cruz. Meu avô contou pra mim que quando ele chegou no Rio com cinco anos, sendo de Muriaé, interior de Minas Gerais, veio para São Cristóvão, e depois foi para Sampaio, e depois para Engenho de Dentro, e depois para Bangu, e depois para Campo Grande. Ele morreu alguns meses depois do dia em que recitamos as estações e foi enterrado em Paciência. Assim como a história do meu avô é marcada por esse distanciamento do Centro, busco através da visualidade das palavras, dos nomes dos lugares também assinalar esse afastamento. Outra história é sobre reativar a máquina de escrever do meu pai, que estava em um quarto há décadas. Meu pai era jornalista e trazer a imagem daquele objeto dava conta de um desejo de imaginar quais palavras foram escritas ali. O nome do trabalho me sugere uma ação de olhar o que chega pelas bordas, coisas que estão no entre, quase desaparecidas. O movimento traz essa busca de refrescar o olhar, aguçar a curiosidade, organizar o trânsito mas também assentar.
Em 2015, no contexto da criação desse trabalho, já fazia algum tempo que eu estava pesquisando o funk para composição em performance e em uma dessas pesquisas eu encontrei a versão original da música Chumbo Quente. Essa que em sua versão em funk fez um enorme sucesso nos anos 2000 era considerada o hino das milícias. A Zona Oeste do Rio de Janeiro é uma região que marcadamente é afetada pelo domínio territorial desses grupos e eu quis fazer uma menção a isso a partir da sonoridade, que remete a uma narração de terror nos versos da música. Discutir essa ambivalência, entre o horror e o prazer da dança, de uma forma abstrata foi uma proposta de abertura para outros sentidos. Percebo que o funk de modo geral, explora muito bem esses e outros contrastes sendo um dos motivos que eu busco estar sempre em diálogo com essa manifestação. Digo manifestação porque justamente me interessa como o funk se apresenta em diferentes contextos. Um deles que me aproprio em outra performance, TrilhaMarginal.2 são as músicas da turma de batebola que eu faço parte. Essas músicas são como funks-enredo que narram a história da turma e do tema escolhido a cada ano. Além disso, as viradas estéticas do funk o fazem cada vez mais estar em diálogo com as afrobrasilidades, conseguindo com maestria se desdobrar em si mesmo, se espiralar na própria história. Entendo a vocação do funk de atualizar diversos elementos da ancestralidade negra, criando um fio ininterrupto entre tradição e contemporaneidade. O tambor sampleado, um beat que vem como um sussurro, a presença audível dos DJs com suas narrações nos podcasts, são camadas que compõem essa performatividade que me interessa dialogar.
_ Outro elemento que capta atenção são os elementos visuais presentes nas projeções. Em seus trabalhos você utiliza projeções de locais, pessoas e espaços frequentes para a maioria da população carioca. Como se inicia a percepção das possibilidades visuais encontradas nesses elementos culturais e o processo de inserção dos mesmos na performance?
Essa percepção se inicia quando começo a experimentar com a fotografia analógica. Essa prática convoca a uma duração maior do tempo em que se olha uma cena a ser fotografada e do tempo em que se vê o resultado. Esse é o tempo em que eu convivo nos espaços e com as imagens, entendendo o papel do corpo nesse processo. Quando eu faço a transição para o digital essas compreensões permanecem, e o desejo de convivência entre corpo e imagem se intensifica. Assim, eu sigo buscando criar e fabular essas imagens, deslizando entre o que pode se chamar de documental e ficcional. Isso é importante nesse jogo de figurar e abstrair, que convida a quem participa das performances a recriação dos sentidos daquilo que é cotidiano.
_ Laís, nessa conversa entre tempo e resultado, penso também no tempo da performance. Ao se trabalhar performance, inicia-se um processo que apesar de planejado, sofre alterações constantes. Do início pra cá, como você vem percebendo esses afetos e a relação deles com seus trabalhos e processos?
O movimento dos saraus teve uma importância ímpar na minha trajetória artística e essa minha experiência dialoga bastante com essa pergunta. Performar em um sarau era geralmente ocupar o espaço da rua em um contexto periférico e lidar com diversas camadas de precariedade. A performance enquanto linguagem já tem se dedicado bastante a pensar sobre esse elemento. Na medida em que a improvisação em dança é uma ferramenta tanto de composição como de experiência, é meu interesse dialogar com essas alterações. Entendo a performance como lugar de troca, me interessa mais compor com o que há no momento. E esse processo se dá a partir de decisões que são tomadas a cada instante. É sobre o diálogo com quem parou para olhar, o trem que passou, de repente eu me deparo com uma barricada, ou alguém armado. Tem uma crueza da vida acontecendo que me encanta, não em um sentido de romantizar, mas de intensificar esse trabalho de sensibilidade, de percepção, de atenção, de criação. Esses são aprendizados que cultivo e levo no corpo.
_ Você atualmente é anfitriã do espaço de arte Citrus Ateliê. É interessante observar o ciclo aqui mencionado, quando você comenta sobre dançar desde criança e sobre sua experiência na escola de dança. Pensando sua posição atual, como é pra você participar desse espaço, que é também um espaço de troca?
Esse papel de anfitriã de um espaço de arte é fundamental para fincar minha posição enquanto uma artista periférica. Neste espaço, voltado para leituras periféricas da arte contemporânea, são realizadas residências, oficinas e eventos de arte, reunindo artistas, iniciativas culturais e pessoas interessadas por arte. É aqui onde eu posso criar intercâmbios entre artistas e suas perspectivas. Também é importante mencionar que o espaço fica na minha casa, então existe uma camada de intimidade que perpassa essas trocas. Para mim é importante que esse espaço atue de uma forma diferente da escola de dança, principalmente porque não existe algo dado, um conhecimento que tenha que ser veiculado. Por isso o nome ateliê faz sentido, é um lugar onde diversas tramas e costuras se dão.
_ Atualmente você também integra o Mó Coletivo. De que maneira você percebe as alterações durante seu tempo no coletivo?
O Mó Coletivo surge dessa necessidade de falar sobre performance e periferia, ao longo desses quase quatro anos de existência nós nos dedicamos a criar espaços para esse debate. Nesse processo entendemos o quanto o tema é urgente não só para nós do coletivo mas para muitos artistas. Hoje entendo o coletivo muito nesse papel de agregar e trocar com artistas periféricos, buscando um senso de comunidade e valorizando as diferenças.
_ Em 2018 você realiza o CORPAS, o encontro de performances de mulheres negras. Conta sobre esse processo…
Eu e Mariana Maia, que hoje faz parte do Mó Coletivo, estávamos muito interessadas em realizar um encontro de performances na Zona Oeste. Essa conversa se ampliou e nos juntamos com Simone Ricco e Danielle Anatólio que estava gestando um encontro de mulheres negras. A partir daí, entendemos que era o momento de fazer algo juntas e que os nossos desejos dialogavam. Assim, nós pensamos nesse evento que aconteceu em dois locais, na Casa Bosque em Campo Grande e no Terreiro Contemporâneo no Centro. Lançamos uma chamada para artistas com as nossas inquietações enquanto mulheres negras artistas da performance e recebemos mais de vinte inscrições. O evento aconteceu em julho, justamente para comemorar o dia da mulher negra latinoamericana e caribenha.
_ O cenário cultural foi um dos mais afetados pela pandemia, para quem trabalha com arte e cultura, foi necessário repensar todo o processo. Trabalhando com o corpo e a performance, de que maneira você nota o abalo trazido pela pandemia após todos esses anos de carreira?
A pandemia abalou muito a relação entre as pessoas com a necessidade do afastamento. Eu como artista do corpo e muito interessada nas aproximações, tenho sentido esse estado de uma forma muito desafiadora. Penso que ainda estou caçando os cacos produzidos por esse rompimento. Por outro lado, tenho buscado expor essa falta através de outros meios. Como outros artistas, durante a pandemia, intensifiquei meu trabalho com vídeos e trabalhos com transmissão ao vivo.
_ Em 2022, você apresenta Verde, uma peça de dança que circula entre diálogos afro indígenas e afro futuristas. Comenta um pouco esse processo e como foi apresentar ele depois, e durante, essa longa pandemia?
Verde é uma peça que compõe a parte prática da minha pesquisa de mestrado em Dança. Eu articulo um conceito de periferia como uma identidade compartilhada, que reconhece as diferenças – as particularidades e individualidades de cada um que se apropria dessa identidade – e o que é comum – o que agrega e cria a sensação de pertencimento. Essa peça considera as minhas experiências individuais, mas também experiências coletivas na periferia, levando em conta o que une e o que difere de forma imbricada. O processo de criação começa com a captação de imagens nos arredores da minha casa, a ideia era filmar alguns elementos do cotidiano para projetar no espaço do Citrus, e assim trazer um pouco da rua para o ateliê. A criação se desenrola a partir da relação com essas imagens projetadas e das memórias que são ativadas ao longo da improvisação, memórias de vários tempos que se espiralam no corpo em movimento. Também foi muito importante trazer a memória da Dona Deia, rezadeira da minha rua, como uma figura que convoca à reflexão sobre a força das plantas, tanto na dimensão ritualística quanto cotidiana. A estreia de Verde foi o primeiro evento aberto ao público do Citrus Ateliê depois da pandemia, foi bastante significativo promover essa proximidade com o público.
_ Laís, você já passou por diversos espaços, encontrou diversos corpos e caminhos, após essas falas, para encerrarmos, gostaria de saber, de todas as suas performances, encontros e planejamentos, algum ou alguns destes tiveram mais impacto em sua carreira…
Essa é uma pergunta interessante. Eu acredito que justamente pela multiplicidade de experiências, a diversidade delas tem muito impacto na minha carreira. São essas diferenças que moldam como eu percebo e conduzo minha produção. Desde as pessoas que são referências na arte até as que estão no meu cotidiano, os encontros formam um fio condutor que me ensina e inspira. Penso que a cada relação eu carrego algo comigo e as minhas identidades estão em relação a esses contatos.
Exposições e eventos
2022
Festival ZoAção de Audiovisual de Periferia, Ser Cidadão (Santa Cruz).
Primavera das Artes, Coletivo Cultive Teatro Cacilda Becker.
Exposição Mó Coletivo, Sesc Caxias.
Pemba Residência Preta, Sesc nacional.
Festival Margem Visual (2021 e 2022), Mó Coletivo.
Mostra Pandêmica, Encontros Performativos Sobre Criação Online – Pandêmica Coletivo Temporário de Criação.
Festival Às Escuras, Pandêmica Coletivo Temporário de Criação.
Dança Ex-Machina – mostra de videodanças, Fair Saturday Festival Lisboa.
2020
Edital Contágio da Revista Espaço-UFRJ.
2019
Mapas para cruzar fronteiras, Galeria Tipografia e Citrus Ateliê.
Residência Demolition Incorporada – CAMPO Arte Contemporânea/ Teresina-PI.
Plural: A Caju encontra a Aymoré – Galeria Aymoré.
CEP 20000 – Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto.
2018
CORPAS – Encontro de performances de mulheres negras (2018) – Casa Bosque e Terreiro Contemporâneo.
2017-2016
Sarau do Escritório (2016-2017) – Praça Luana Muniz, Circo Voador, Palacete Princesa Isabel, Museu de Arte do Rio.
Sarau do Velho (2016-2017)- Vila Aliança (Bangu), Morro Agudo (Nova Iguaçu), Centro Cultural Laurinda Santos Lobo (Santa Teresa).
Diálogos sobre o Feminino – CCBB São Paulo e Brasília.
Como falar de Arte Feminista à Brasileira (2016)- Centro Cultural Municipal Hélio Oiticica.
Festival Satyrianas (2016)- Espaço Satyros/SP
Festival de Teatro de Curitiba (2016)- Teatro Novelas Curitibanas/PR.
2015-2012
Sarau Afroresistências (2015) – Escola de Belas Artes – UFRJ.
Festival Auteurs de Troubles (2012) – Lyon/FR.
Clarisse Gonçalves 1998. Graduação em história da arte na UERJ. Pesquisadora e historiadora da arte situada no Rio de Janeiro. Atualmente pesquisa manifestações artísticas periféricas, negras, e afrodescendentes no estado do Rio de Janeiro.