Clara Machado – Entrevista

Clara Machado (Rio de Janeiro, 1994). Artista visual, atualmente cursa o mestrado em Processos Artísticos Contemporâneos pelo PPGARTES-UERJ. É formada em Artes Visuais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e realizou um ano de estudos no curso de Artes Visuais da Universidade IUAV de Veneza, Itália. Realizou diversos cursos na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde foi selecionada para o Curso de Desenvolvimento em Gravura Contemporânea. É integrante do Projeto de Extensão Experiências Indiciais, coordenado pela Profa. Dra. Inês de Araújo na UERJ, e participou de mostras e exposições coletivas nacionais e internacionais.
Sua atuação compreende diversas linguagens da produção artística, com particular interesse em gravura, objetos, escultura e instalação. Investiga a noção de ruína, particularmente ligada ao corpo – o corpo em ruína -, atravessando questões como a morte, os restos e a memória.

Clarisse Gonçalves: Porque gravura e escultura? Como artista você lida frequentemente com tais materialidades, e a relação que tais meios estabelecem com seu trabalho é interessante. Quando você percebeu que gostaria de explorar esse caminho?

Clara Machado: A gravura e a escultura se retroalimentam no meu trabalho. Comecei com a escultura trabalhando com cabelos humanos, e em determinado ponto quis explorar esse material como matriz de gravura. Ocorreu que as matrizes em si passaram a me interessar como objetos tanto quanto as impressões, o que me fez retornar à tridimensionalidade. Desde então venho caminhando nesse movimento duplo entre a gravura e a escultura / objeto com diferentes materiais.
Em termos de poética, acho que se trata de uma relação entre presença e ausência. Meu
trabalho fala de rastro, relação entre o que se perde e o que resta, e isso se manifesta com frequência no tipo de material que utilizo – cabelos, dentes, ossos, objetos velhos –, nas minhas imagens e no formato de “relíquia” que confiro a algumas peças.
A gravura é um rastro, a imagem que se produz é resultado do contato de um corpo com uma superfície, mas esse corpo precisa se ausentar para que a imagem apareça. O corpo marcado, então, está presente por ausência. O que permanece é um rastro, um vestígio, algo que se insinua sem se revelar na sua totalidade. A escultura, por outro lado, é uma presença, no sentido empírico – ela está ali, presente –, o corpo da escultura está presente, mas no meu trabalho esse corpo se apresenta sempre como fragmento, portanto também como falta. Falta que se dá a ver através da presença daquilo que resta. Desse modo, a gravura e a escultura tem sido suportes que produzem na imagem o tipo de tensão que me interessa.

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Clarisse Gonçalves: Clara, seus trabalhos percorrem questões do corpo e sua ligação direta com a ruína, de onde surge a vontade de trabalhar tal abordagem?

Clara Machado: Meu trabalho é sempre uma tentativa de resposta aos meus assombros, sou assombrada por algumas imagens e vou tentando responder a elas. Não sei bem dizer de onde surge o interesse… ele é da ordem do desejo, um território difícil de mapear. Meu processo se dá numa tentativa de “confiar” nas imagens e leva-las até onde elas forem, e o pensamento se dá a partir das imagens, nas imagens.
O corpo é uma dessas imagens, que me assombra no fascínio ao mesmo tempo sedutor e
inquietante de pedaços de corpo como cabelos ou dentes, ou a tensão de um corpo entre o erotismo e a morte. Mas o corpo que aparece em meu trabalho não é um corpo pleno, que se afirma positivamente, e sim um corpo fragmentado, que se aproxima à lógica da ruína.
A ruína aparece então como uma imagem que é modo de pensamento, e busco compreendê- la a partir de algumas perspectivas que incorporo ao meu método de trabalho. A ruína se caracteriza pelas lacunas e incompletudes, dinâmica que se dá no contato entre falta e presença – aproximando-se da relação que estabeleço entre a gravura e a escultura. Além disso, a ruína é uma imagem que evoca a perda, a morte e a memória, e incorporo estes aspectos como elementos materiais ao meu trabalho através do uso de objetos velhos e desgastados e de fragmentos de corpo.
Acho que a morte acaba sendo o elo entre o corpo e a ruína, a morte vista através do que
resta. Esse resto acaba carregando alguma magia, ele é preservado para presentificar a ausência do que foi e se perdeu. É um movimento duplo, ambíguo, assim como a ruína. Acho também que a arte é um dos caminhos para pensar as ruínas de si. Em um mundo que recalca as fragilidades através de discursos militaristas e positivistas, olhar os nossos mortos e as nossas ruínas é uma necessidade visceral.

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Clarisse Gonçalves: Você trabalha diretamente com a ideia de memória e ressignificação da perda. A partir dos objetos da ruína, como cabelo, dentes e ossos são gerados outros objetos com diferentes significados, como as Exéquias (2018) produzidas por você. Houve alguma mudança na sua relação pessoal com seu objeto de pesquisa e tais materialidades?

Clara Machado: Sim, essa relação está sempre em movimento e me (ia dizer “se”, mas disse “me”… ato falho) modifica à medida que o trabalho vai se desenvolvendo. Se modifica e me modifica porque o trabalho é pensamento, novos problemas surgem das respostas anteriores pedindo novas soluções, que por sua vez geram novos problemas. O trabalho é um organismo vivo e eu também, então essa relação se contamina pelas coisas que eu vejo, pelo tesão que um material novo provoca, enfim, tudo isso vai fazendo o processo acontecer. O próprio termo “processo” subentende que haja a mudança. Mas essa mudança responde a um movimento interno do trabalho, então de algum modo tem alguma coisa ali que permanece a mesma.
Talvez essa coisa seja aquilo que a gente chama de uma poética, uma questão de fundo à qual se retorna e que conduz tudo. A memória e a perda aparecem no meu trabalho em um primeiro momento a partir de uma abordagem bem pessoal, muitas vezes tocada por uma dimensão autobiográfica. Trabalhei muito com os cabelos da minha avó, com objetos dela que recolhi depois da sua morte, e nessa fase a relação que estabelecia com os objetos era muito íntima e afetiva, atravessada por um processo de luto. Daí o corpo foi assumindo um protagonismo, o erotismo começou a aparecer como questão junto à morte, outros fragmentos de corpo – recolhidos, doados por outras pessoas, produzidos por mim através da escultura – foram incorporados, e pouco a pouco a memória deixou de ser apenas a minha memória para se tornar uma memória em geral, uma memória sem dono. As Exéquias, por exemplo, são trabalhos que leio nessa chave – não importa a quem pertenceram aquelas joias, aqueles dentes… importa que eles se apresentam como memória. Então a memória (bem como a perda, a ruína) além de objeto de pesquisa foi se tornando também método de trabalho, sendo incorporado como dinâmica na imagem.


Clarisse Gonçalves:
No seu trabalho existe uma tentativa de se fazer enxergar o que é silenciado, como as ruínas e a própria ideia de morte. Por fim, a memória é um dos itens fundamentais na resistência e luta contra as violências do cotidiano. Clara, considerando nosso contexto político atual, como você enxerga a relação entre o apagamento da memória e o presente momento histórico?

Clara Machado: É evidente que estamos vivendo em meio a um projeto de sistemático apagamento material e simbólico muito grave. O passado, nos ensina Benjamin, se apresenta como uma catástrofe enquanto a tempestade do progresso nos arrasta pro futuro, e diante disso a memória deve funcionar como um “norte invertido” conduzindo o percurso, é preciso andar olhando pra trás.
No meu trabalho, a memória, a ruína, a morte, tudo isso vem através dos restos, então no fim das contas eu estou falando também de sobrevivência. Conversava outro dia sobre a exposição das peças resgatadas do Museu Nacional no CCBB, em uma vitrine tem uns pedaços de algodão carbonizado com insetos em cima, que se fundiram e viraram um objeto lindo e terrível ao mesmo tempo, e aquela beleza me provocou um incômodo muito forte. Esse objeto é uma ferida aberta, fala de tudo aquilo que foi destruído e se perdeu, e foi muito estranho ver beleza ali. Por algum mistério aquele objeto permaneceu, e tem uma magia nele, ele é um ponto de luz. Mas a questão é que essa luz não é puramente positiva, ela carrega uma negatividade (a da morte), e por isso o incômodo é inevitável.  Lidar com a memória é lidar com isso, com essa dualidade, que no fim das contas se trata da dualidade entre vida e morte. Uma não é sem a outra. Então é preciso ter coragem de olhar, por mais incômodo e doloroso que seja, sustentar o olhar nesses pontos de luz negativa para que nossa ação no mundo tenha algum sentido diante do que já foi, dos nossos mortos.
Talvez tenha fugido um pouco da sua pergunta, não sei, não acho que meu papel seja o de fazer uma análise de conjuntura. Falo como artista que é atravessada por essas questões, e meu modo de pensá-las é através das imagens. O que eu busco no meu trabalho é essa zona de luz negativa.

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PREMIAÇÃO
2019 II PEGA – Trabalho premiado em 3º lugar na categoria Exposição.

EXPOSIÇÕES
03/2019 Artes Aquáticas, curadoria: Daniele Machado e João Paulo Ovídio, Golfinhos da Baixada, Queimados.

12/2018 MIRABILIA, curadoria: Fabiana Dicuonzo, John Gatip, Giuseppe Resta, Antilia Gallery, Puglia, Itália.

12/2018 II PEGA, curadoria: Daniele Machado, Gabriela Lúcio e João Paulo Ovidio, Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica – Rio de Janeiro.

08/2018 Formação 2017, exposição de formatura da graduação em Artes Visuais da UERJ, Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica – Rio de Janeiro.

03 a 05/2018 Achados e Perdidos, curadoria: Marcelo Campos, Galeria Gustavo

Schnoor, UERJ – Rio de Janeiro.

01 e 02/2018 Experiência 9 + 1, curadoria: Pollyana Quintella, Centro de Artes UFF, Niterói.

09 e 10/2017 Experiência 9 + 1, curadoria: Pollyana Quintella, Centro Cultural da Justiça Federal, Rio de Janeiro.

05/2017 ALCHIMIA – tra Spazio e Tempo, curadoria: Margherita Moro, Pietro Consolandi e Valentina Granello, Ca’ Tron, Veneza, Itália.

01/2017 FRAGILE – handle with care / II Edição, curadoria: Benedetta Spagnuolo, Museoteatro della Commenda di Prè, Genova, Itália.

11/2016 – 02/2017 Novas Poéticas, curadoria: Germano Dushá, Guilherme Gutman e Pollyana Quintella, Fundação Museu do Futuro, Curitiba.

08/2016 Experiência 9 + 1, curadoria: Pollyana Quintella, A MESA, Rio de Janeiro.

08/2016 Ocupação Cultural Moraes e Vale, curadoria: Paulo Branquinho, Rio de Janeiro.

12/2015 Mostra Videoarte, curadoria: Analu Cunha, Castelinho do Flamengo, Rio de Janeiro

Design sem nome

Clarisse Gonçalves 1998. Graduação em história da arte, UERJ. Pesquisadora e historiadora da arte situada no Rio de Janeiro. Atualmente pesquisa manifestações artísticas periféricas, negras, e afrodescendentes no estado do Rio de Janeiro.